Um dia eu acordei e tinha desaparecido. – Abri os olhos,
desliguei o despertador e repentinamente conseguia levantar-me sem que o meu
corpo tremesse.
Um dia acordei e de repente já não parecia andar dormindo,
sorrir dormindo, falar dormindo. Ouvia os meus passos. Via nos olhos dos
outros, nas suas caras os meus lábios a rir. Simplesmente a rir. Conseguia
perceber as minhas próprias palavras. – Já não estava em mim. Já não o
procurava debaixo da almofada ou nas algibeiras. Já não esperava ser atingida
com os olhos de quem não vê e com o espaço parado onde cabe a distância de mil
histórias contadas, recontadas que pareciam nunca acabar – E eu percebi, nem sempre
precisamos de perceber o final. Por vezes, é melhor não percebermos o final.
Não procurar.
Abri os olhos e já não estava. Não foi o sol que nasceu. Fui
eu que nasci quando o sol nasceu, sem sequer dar por isso.
E se eu posso nascer, porque não poderás tu?
Não corras agora, porque o caminho parece mais longo quando a ansiedade da chegada é maior que tu. – E tu não podes correr. Eu sei que não podes correr com as tuas pernas atadas ao cansaço de quem já percorreu todas as distâncias de todas as histórias, com os teus braços segurando os pequenos pormenores, as pequenas falhas, com os teus braços medindo forças com as memórias – a tua cabeça a perguntar “É agora?” e tu a quereres dizer-lhe “Tem de ser agora”, mas no fundo tu sabes, não é.
Não corras agora, porque o caminho parece mais longo quando a ansiedade da chegada é maior que tu. – E tu não podes correr. Eu sei que não podes correr com as tuas pernas atadas ao cansaço de quem já percorreu todas as distâncias de todas as histórias, com os teus braços segurando os pequenos pormenores, as pequenas falhas, com os teus braços medindo forças com as memórias – a tua cabeça a perguntar “É agora?” e tu a quereres dizer-lhe “Tem de ser agora”, mas no fundo tu sabes, não é.
E eu sei, não é agora. Eu gostava tanto que fosse agora. Mas
se não for, promete-me só que não morres. – Aqui. Aqui nas gargalhadas que
deixaste e nas parvoíces que aceitámos como se tivéssemos esperado a vida
inteira para as conseguir dizer a alguém.
Eu esperei a vida inteira.
– E de repente não eram parvoíces.
Então espera. Espera sentado no vazio de todas as histórias
juntas porque no final elas vão ser só histórias. Só histórias como as minhas o
são. Como as são a de todos aqueles que já amaram demais. Que já amaram até a
pele doer, até não saber onde doía. – E eu sei que dói, mas podes continuar a
respirar? Continua a respirar porque um dia vais acordar.
Não morras. Não morras para ti. – Aqui, não morras aqui.
Porque o teu lugar para morrer, o teu tempo para morrer não é aqui. Só precisas
de continuar a respirar (ainda que a caixa torácica pareça não aguentar mais um
suspiro, mesmo que a cabeça pareça não suportar mais uma palavra, mesmo que a
vida pareça não conseguir encontrar razões.)
Tu vais perder-te. Perde-te um pouco. Perde-te para que te encontres. Eu também já me perdi e afinal a casa era logo ali, ao virar da esquina.
Tu vais perder-te. Perde-te um pouco. Perde-te para que te encontres. Eu também já me perdi e afinal a casa era logo ali, ao virar da esquina.
Mas não morras. Aqui.
E os teus olhos, eles falam todas as palavras que tu não
consegues porque não as sabes. Os teus olhos sabem melhor que tu todas as tuas
curvas e enleios – E neles eu sei-te como sei de que linhas são feitas as
minhas mãos. E é por isso que não te posso deixar morrer. – Morrer aqui. Ou aí.
Definhar na negrura que não és tu, como achas que é. Não posso deixar que te
extingas nessa ideia louca de que não existe luz no teu âmago. – Mas aqui,
agonizo para te mostrar aí que és gigante de palmo e meio e virtude enganada na
idiotice dos demais.
Dos demais. Porque não és como os demais. Como eles te sabem
e te vêm, como eles te sentem. (sentem-se ao menos a si mesmos?)
Pergunta. Pergunta mais um pouco e não esperes resposta senão quando não perguntares mais.
Pergunta. Pergunta mais um pouco e não esperes resposta senão quando não perguntares mais.
E eu sinto. Sinto as cores de que és feito com a maior força
do mundo, como se a minha força te levasse a crer que realmente as tens. Que
realmente estás inteiro, inteiro como nunca ninguém esteve. A cada parte de ti,
vejo-te inteiro. Mesmo que tão partido.
Não morras – Bastavam-me estas duas palavras se as
conseguisses ouvir. A cada passo silencioso, a cada sorriso que parece não
chegar, nunca chegar, a cada palavra que engulo como se as minhas palavras te
pudessem puxar de ti mesmo e mostrar-te a ti mesmo. A cada saber que estás, eu
repito não morras. – Aqui.
Se eu nasci, porque não poderás tu? Nascer da parte de ti
que brilha. Que ofusca e me faz medo, mas que me chama e tu não sabes. Me diz
que só de me ofuscar, eu já posso ficar feliz e sorrir.
E eu gostava de te dizer, se ao menos soubesse. Soubesse
como te dizer a forma como entras-te e mudas-te o som da minha voz. Como
ninguém antes conseguiu descobrir essa parte que não tem medo de ti, porque ela
tem medo do resto do mundo. E eu queria não ter medo.
Não morras. Não te posso deixar morrer.
Ainda não é hoje, eu sei. Não vai
ser amanhã, nem no dia seguinte. Mas eu prometo que o teu dia de acordar vai
chegar – e tudo vai parecer tão pouco comparado com o tanto que é hoje.
Amanhã, quando os teus olhos se
virem a ver-te, quando as tuas palavras começarem a jorrar de silêncios que não
compreendes ainda, eu prometo-te, tu vais abrir os olhos, desligar o
despertador e levantar-te sem que o teu corpo trema. – E o chão vai parecer o
mais seguro do mundo, vais até temer que ele tenha parado um pouco, para te ver
nascer. E de repente já não vai estar lá.
Mas agora, por favor, não morras.
- Aqui.
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