quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Notícias do Fundo


 Abria os olhos mas o negrume era maior que eu. Estendia-se sobre mim como se sobre um amante e fingia que me amava.
Não sei ter o diabo à cabeceira de perna trocada e risada fácil. Não sei ser eu quando conto piadas ao diabo e ele se ri, e apaixona, se encanta. - Pega em mim e quer deixar-me a ser escuro no escuro.
Deixar-me apagada.
Ficar apagada seria bom. Parar. Entorpecer braços e pernas e garganta e olhos e ficar no escuro sem sentir o escuro.
É o diabo a rir - A minha gargalhada. O meu silêncio é o diabo a rir à minha cabeceira com a perna trocada. E o som é uma faca que fica entre as costelas para não matar. -  Para ser frio. Para não matar - Para ser dor. Para não matar - Para fazer girar a cabeça até a cabeça se fraccionar.
A cabeça é sempre uma fracção.

Deixa-me rir enquanto me pinto de negrume.
Deixa-me rir para não chorar.

A forma de cozinhar muda. Muda a forma de escrever, de pôr a mesa, de varrer o chão. - E é o diabo a rir na minha cara, a entortar-me as letras, a fazer-me falhar as linhas, a confundir-me os ingredientes, a sujar-me o chão depois de limpo, mais uma vez.
A cabeça é sempre uma fracção.

A minha pele ardia. Não podia fazer mais nada, ardia.
Deflagrava em chamas como se embebida em álcool.
Não se abria o chão, abriam-se as veias, contorciam-se os músculos.
Porquê?
A minha pele ardia e doí e ardia.
Era a cabeça uma fracção - A vida uma chance cada vez mais perdida, a cada passo dado.
Eu. Faltava eu. Mas eu estava ali. A ser e a deixar-me ser amada pela escuridão.
Lembrei-me de quando não sabia o que era o amor e apeteceu-me chorar. Apeteceu-me chorar para não rir. Pela primeira vez apeteceu-me chorar.
E o diabo calou-se.

Eu brincava. Brincava tanto quando não sabia bem o que era brincar no seu sentido teórico. Brincar era trocar a roupa às bonecas e cantar em frente ao espelho.
Eu não sabia que brincar era esgotar a forma mais simples do amor.
Eram palavras - Sabia-as amor porque diziam que elas o eram. Mas eu preferia brincar.
Perdi tempo a não querer crescer. Perdi tempo a esgotar brincadeiras enquanto devia ter percebido que isso era esgotar o amor.
Eu brincava e ria. E nunca mais voltei a rir da mesma forma que ria desde que a teoria passou a ser eu.
Um dia deixei de brincar.
Hoje procuro um amor que esteja na sua forma mais simples.

Quando abro os olhos o negrume é maior que eu.
O negrume é mais pesado. Sinto-o segurar-se nas minhas costas como uma criança nas costas do seu progenitor. E como ao seu progenitor ele segreda-me: tenho saudades tuas. Segreda-me constantemente: tenho saudades tuas.
E ele está sempre comigo.
Mas o negrume é como a morte: só deixa de nos chamar quando já nos tem por completo. Quando somos negrume. Quando somos morte.

Se sinto, tudo o que sinto é nada. Nada é uma ânsia que sobe do peito à garganta, que treme no estômago e aperta as fontes. É como uma enxaqueca; faz querer vomitar.

Não sei ter o diabo à cabeceira de perna trocada e risada fácil.
Faz-me querer chorar. E eu lembro-me de quando brincava e não sabia que brincar era esgotar a forma mais simples de amor. Faz-me querer chorar.
Pode ser que assim o diabo continue calado.

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