O tempo corre. O tempo corre como me corre o sangue nas
veias e é frio como o é o sangue que me corre nas veias.
1.Eu podia sentar-te aí e contar-te todas as histórias que
gosto de contar a mim mesma quando está demasiado escuro e tenho medo. Eu podia
sentar-te aí e ficar a ver-te sentado a ver-me e sentir que faço parte das
moléculas de ar que nos separam. Eu esqueci-me, no entanto, que na faculdade de
ser eu sou agora o pano de fundo na tua loja favorita; a música que vem do
canto do café onde tu te concentras em risadas que nem são tuas. – Eu podia
sentar-me e fingir que tenho alguma coisa para contar, mas o dia é longo e eu
perdi a paciência para histórias. As histórias emocionam-nos.
2. De mim sei a cor dos olhos e a forma dos lábios. De mim
sei que não vou querer acordar e que me vou esquecer de abrir a janela. Sei que
não vou fazer a cama e que a confusão é maior quando eu não faço a cama. – Mas está
tudo bem; eu sei que me repito; mas está tudo bem.
E repetir-me é como dizer: é desta vez, tudo de uma vez. É: já
não há tempo. – O tempo está aqui, na palma das minhas mãos tão presente como
as queimaduras de meia chama apagada. Está aqui, mais que queimaduras, arde
como se nunca o quisesse apagar. E já não há tempo, mas cinza cinzenta que se
desfaz. Como se desfazem as minhas palavras no intuito fraco de terem algum
intuito.
As palavras. Elas pesam-me nos ombros como o farnel para o
dia todo. Como o farnel para mais de uma dezena de anos em que a única coisa
que consegui saber de mim foi que em mim devia abandonar tudo. Fechar portadas,
selar portas, queimar móveis, partir paredes. – E esperar enquanto te sento e
me sento que amanhã ainda exista uma casa para onde voltar.
De mim sei o frio das mãos, típico. E o movimento parado do
respirar, obrigado.
3. Houve um dia em que deixei de ter medo. Foi esse o dia em
que os passos foram dados com a corda a apertar o âmago. – Mas os passos eram
dados e estava tudo bem; repetia; estava tudo bem.
Houve um dia em que
te levantaste e eu deixei de te poder sentar e as histórias morreram para mim
como morre um pássaro após o primeiro voo.
O tempo corre. O tempo corre como me correm as memórias no
fundo da garganta e são amargas como o são as memórias que correm no fundo da
minha garganta.
4. Eu sei que te devia ter perguntado se estavas a sufocar. Eu
soube que sufocavas. Foi por isso que te levantei e te empurrei antes de partir
paredes.
A chuva caiu-nos no centro da cabeça e ainda hoje tentamos
decidir se nos molhou ou nos aqueceu. Eu nunca gostei de tectos – Agora podes ver o mundo todo e o mundo todo
não é senão aquela colina ali. Não desce. Não sobe. Não existem paraquedistas,
fogo de artificio ou sequer sol. Existem os escombros e a corda que te
sufocava. – Nem cadeira. Só laços.
Laços que não apertam bem mas que ficam bem meio apertados. –
Metade do pulso dentro, e metade fora. E aperta. Aperta como apertou a corda no
âmago e se eu não sufoquei tu não podes sufocar. – Mas eu sufocaria, corda no
âmago, laços no pulso. Na garganta. Nos olhos.
Houve um dia em que deixei de ter medo. Foi esse o dia em
que eu deixei de me repetir. Foi esse o dia em que parei para cear, e o farnel
continuava a pesar. Foi esse o dia em que o silêncio foi a melhor companhia
para jantar.
5. De mim sei as lágrimas que deixei de ter porque as lágrimas
são como dormir com peluches quando se faz vinte anos. De mim sei as lágrimas
que deixei de ter, porque se foram.
De mim sei que tu sabes porque é que um dia tive lágrimas.
E eu podia sentar-te aí e deixar-te ver-me. Eu esqueci, no
entanto, que não há problema em veres os escombros e a corda. – Eu podia
sentar-me e fingir que também tens lágrimas e corda para me deixares ver. Mas
os escombros ficam no fim de nós. E os fins fazem-nos chorar.
O tempo corre. O tempo corre como corre o ar nos meus
pulmões e é escasso como o é o ar que corre nos meus pulmões.
De mim sei que estou melhor quando não consigo respirar.
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