domingo, 29 de dezembro de 2013

Chaga


Era no centro do fogo. No âmago da confusão.
Era no lugar onde ninguém quer estar mas onde estamos todos, pés com pés, costas com costas, vidas com vidas, sem querer saber que estamos. - Estamos cheios de medo. Estamos cheios de medo e o silêncio não são mãos a acariciar-nos a nuca; o silêncio são grilhões que nos restringem os movimentos. Estamos cheios de medo e não é dos grilhões, é dos movimentos que não fazemos. (Dos que fizemos compulsivamente.)

Era no centro do fogo. No lugar de arder sem existir retorno.
Era no não existir retorno que encontrava a razão para arder - um final definitivo, vagaroso, alucinado sem voz, um descanso no vácuo do descanso do corpo de tudo. - Era no não existir retorno que abraçava o centro do que não era só fogo mas era eu a arder lentamente, a querer queimar vísceras a querer queimar pele a querer queimar ligações neuronais que já não dizem muito porque falam tanto, falam tanto, tanto. Dizem delas o que não sabem como se não fossem eu, empurram puxam arranham arrepelam - dizem delas e elas são mais que eu. Era no centro do fogo, na quietude de arder sem movimentos compassada pelo agitar repentino do que é ter medo dos movimentos que não fazemos. -Estender braços. Tocar levemente. Sentir a pele áspera na ponta dos dedos feridos do frio. Sentir que estender os braços, sentir que sentir a pele áspera não chega. Há uma barreira que nos separa; chama-se nós.

Era no centro do fogo. Nas cinco da manhã a mãos com uma insónia.
Era numa cama de lençóis enrolados e na falha da capacidade de distinção entre o céu e o inferno - nas cinco da manhã somos mais nós. Somos mais os monstros que não nos deixam ser; dentes que mordem os próprios lábios, que não páram, que não deixam respirar não deixam mover não deixam de morder até ao gosto do sangue. É ali. No sangue. É no sangue que o fogo começa, devagarinho a levantar-se: todo o sistema vital básico a provocar-te a morte.
Era no centro do fogo, no sangue que não conseguimos ver derramado mas que enamoramos dramaticamente como que encantados com a tristeza da ordem com que fomos criados - Onde está Deus?








No centro do fogo. No silêncio que são grilhões que é medo. Deus não está nas cinco da manhã a mãos com uma insónia. - Oiço-lhe apenas as gargalhadas.
Era no centro do fogo. Vai ser sempre no âmago da confusão.

domingo, 22 de dezembro de 2013

Este Natal...


É incontável a quantidade de perguntas feitas durante um dia. Dois dias. Uma semana. Um mês, anos inteiros, uma vida toda. São como segundos, quando vêm já foram, mas são segundos quase eternos porque perenes em arranhões e feridas. As perguntas deixam feridas. Deixam espaços abertos, infectados de medo que paralisam o corpo se não esquecidos do que significa não ter o corpo paralisado.
São incontáveis, as perguntas e tanto quanto incontáveis são erradas. Não porque não têm resposta, mas porque a pergunta em si não é a certa. Não questiona o que deve questionar, não abana o que deve abanar, não choca o que deve chocar. É por isso que estamos em guerra constante mesmo quando não estamos em guerra - Porque as perguntas não são suficientemente violentas.
Não é engraçado. Não é engraçado que precisemos de violência para percebermos que a violência é algo de que não precisamos. É uma cadeia, assim, como a forma como disse violência para violência, precisamos para precisamos. É uma cadeia de falta de perguntas de outras cabeças e não da nossa. Porque a nossa cabeça é nossa e ingenuamente acha que nos conhece e quando acha que nos conhece lembra-se de nos forçar a querer reinvindicar o direito à veracidade de tudo o que digo. - O que é a veracidade?, e esta pergunta é daquelas que deviam ser feitas. Mais do que ser feitas, é daquelas perguntas que deviam demorar-se na resposta porque não é o conceito da resposta que importa, são os actos dele resultates ou dele resultados que devem importar.
O que é a veracidade? - São imagens. Imagens paradas e talvez por paradas insuficientes - E nós queixamo-nos. Sobe-nos ao nariz a mania da humanização pessoal e dizemos: Eu não tenho que aturar esta violência. Eu não tenho que suportar este choque visual. Eu não tenho que, não quero que, não posso que...Eu não sei que. - Este é o maior que de todos, e ainda assim nunca é explicitamente pronunciado.
Eu não sei que, é humildade. - Talvez por isso não seja dito, talvez por isso não seja, sequer, pensado. Eu não sei que.
Eu não sei o quanto sofrem pessoas que sofrem muito. E há pessoas que sofrem muito - por não existir, por existir demais.
A veracidade é principalmente a nossa mania de fazer as perguntas erradas e de aceitar as respostas cómodas. - As pernas são pesadas quando a consciência é pesada e a economia dá jeito quando já nada nos pode salvar. - Tenho uma novidade para ti, que lês isto: nada nos pode realmente salvar. A partir do primeiro segundo em que respiramos até ao último, nada nos vai salvar.
Podes encher-te de diamantes, nadar em rios de ouro. Podes usar as melhores marcas, viver no mais luxuoso castelo, usar as fragrâncias mais encantadoras que nada disso que tens te vai salvar. Nada disso que tens te vai servir de barco para o céu. Já paraste para pensar se existe um céu? - Aqui, muitas vezes, parece o inferno.
Aqui, muitas vezes, parece mais do que o inferno porque não é mera criação ou conceito. Aqui morre-se porque existe quem mata. Aqui morrem-se muitas vezes antes da última respiração. Aqui morre-se principalmente por se querer viver demais. Por se querer ser demais e não se perceber que somos aquilo que fazemos e não o que utilizamos para decorar a casa. Fica bem, decorar a casa. Parece brilhante e bonita. Tanto quanto fica extremamente bem decorarmo-nos e apetrecharmo-nos e usarmos palavras que não conhecemos o significado e lutarmos por abolições que não nos dizem nada.
O mundo tornou-se um desfil de moda gigante, uma passerele para fazer sonhar, mas nessa passerele nem todos têm lugar cativo - Há aqueles que não sonham porque a noite é lugar de monstros e não de uma cama quente e aconchegada.
 Gostamos de dizer e de ouvir "Não há muito que se possa fazer..." porque permite-nos dormir em paz nessa cama quente e achonchegada. Permite-nos ser amanhã o que fomos hoje, e ontem. E no ano anterior. Ou deverei dizer ter? - Mas nesse caso têm-se sempre mais.
 Hoje queria dizer-te a ti, que lês isto, que as teorias são coisa pouca para se saber. Que existem imagens que te vão enganar e tu vais aplaudir e outras que te vão mostrar a natureza humana com os dentes afiados e tu vais rir-te e fazer troça. Vais dizer que é dramatização. Queria dizer-te que vivemos num campo de batalha que não pára de acontecer e evoluir e que nos ataca acariciando-nos. Não, não vives num conto de fadas, não vives numa telenovela portuguesa e possivemente nem tudo vai terminar bem. - Abre os olhos.
Antes de pedires o último ipod, iphone, computador. Antes de te vangloriares pelo preço da tua camisola, das tuas botas, da tua casa de férias, do teu carro. Antes de apoiares aqueles que matam, que com palavras devastam vidas e corações e memórias. Antes de te quereres mostrar aos outros. Abre os olhos e mostra-te a ti mesmo - Estás orgulhoso? Consegues sorrir agora? - , tira de ti o que é a mais em ti e não te decores.
Olha para as tuas marcas e as tuas cicatrizes e o que dói e levanta a cabeça.
Tu, que estás a ler isto, quando foi a última vez que te disseram obrigado por simples palavras, por uma mão aberta por um sorriso mais aberto, pela disposição? Quando foi a útima vez que a tua pergunta foi a correcta?
São imagens paradas, a veracidade. Imagens que ignoramos porque nos questionam acerca de nós mesmos. Há ainda muito que fazer, somos todos tão incompletos e andamos com o rei na barriga a pensar a quantidade de poder que nos dá parecermos completos. Mas é na fragilidade que está a base humana, para lá da violência. É na fragilidade que se perde tudo se muito se tem.
É incontável a quantidade de perguntas que conseguimos ignorar durante uma vida inteira, a quantidade de respostas que oferecemos a nós mesmos como panos quentes que não nos salvam de nada, a quantidade de luzes que nos ofuscam e que deixamos que nos ofusquem.
Este Natal desejo para ti coragem de fazer as perguntas correctas - E a coragem de ouvir as respostas inesperadas.

O mundo é um campo de batalha contínua - Fica do lado de lá das trincheiras. E se as quiseres ultrapassar, que seja para perceber o que é morrer e não para ajudar a matar.

Feliz Natal.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Já chega por hoje.


I. Quando as palavras se alojam na parte da frente do crânio começam a doer como se roídas por ratos vagabundos. - Sem qualquer tipo de intenção, porque sim. Porque os ratos têm fome e porque a vida não lhes dá de comer.
As palavras alojam-se no crânio por serem demais - Empurram-se umas às outras para chegar, para caber, para significar - ou por serem em falta - por estarem perdidas e não saberem muito bem para onde ir. Vão para a frente do crânio e chamam os ratos que vão porque sim, porque têm fome, porque como as palavras não têm morada certa nem reconhecem ambiente familiar.
Quando as palavras se alojam na parte da frente do crânio há uma dor fria que se espalha como fumo de condensação na sua facilidade- espalha-se como que na testa, isola-se em si mesma e atira-se, corpo sólido, à ossatura craniana, faz tamanho peso sobre ela que, inocente, ela quer pender para o chão.
Há uma dor, quando a cabeça quer rolar pelo chão. Mas é no querer que dói, é no querer e não deixar, não conseguir.
Há uma dor. É essa dor que nos diz: já chega por hoje.
Mas os ratos não tiram férias e as palavras existem até (quão mais audíveis?) no silêncio que é a cabeça a rolar pelo chão.

II. Não sei dizer ao certo quantas foram as palavras que desfiei até perder a vontade de ficar com elas. Foi sempre essa urgência- Oferecê-las. Depositá-las nas mãos de alguém como se das minhas vísceras se tratasse, as minhas vísceras que mostram. As minhas vísceras que são. As minhas veias corroídas, o meu sangue espesso; as minhas palavras como vísceras , mais vísceras porque urgentes de dizer que corroídas, que doídas que sufocadas.
Desfiar palavras é também, e muito mais, desfiar-me. Desfiar-me é desfazer-me, ter que me criar sem mãos dispostas e moldar estados de alma com encontrões e nódoas negras. Desfiar-me é perceber que as palavras não chegam e deixam de ter significado no seu cerne. - fica o significante a bailar, a ser repetido na voz louca de ser só significante.
(Não te explico nada. - As fugas são recíprocas e racionais. A cobardia é parte do ser humano no seu nível mais frágil. Ninguém quer ser chamado de frágil. - Não te explico nada.)
Há uma urgência no falar, uma urgência como vísceras a quererem ser entendidas: a desconstrução. A urgência de falar é perceber.
Não sei dizer ao certo quantas foram as palavras que desfiei até as palavras desfiadas serem só significante.

III. Não te posso fechar nas minhas mãos sem as querer cortar. - Fechar os olhos, engolir em seco, forçar os olhos a não ver. NÃO ESTOU A VER, NÃO ESTOU A VER. - e é claro.
Não te posso tocar ainda, nem esticar os meus dedos sequer - não me toques porque na casa que as minhas mãos formam à tua volta, o ar é meu, as paredes sou eu, o teto sou eu, os alicerces sou eu e os alicerces vão ruindo aos poucos. Em palavras e não palavras, pequenos ruídos inentados no intento das palavras e não palavras, pequenos Ah, que se perdem, coragem engolida, mastigada, mastigada novamente, escondida na parte da frente do crânio onde os ratos vão comer.
 A língua enrola-se para pedir. Para dizer: Deixa-me cuidar de ti, podes cuidar de mim? A língua só não se enrola para desdizer, para declarar "eu venço, eu venço. Não peço nada, não digo nada."
 E o único vencedor são os ratos. Os ratos e as minha mãos fechadas sem ti lá dentro, as minhas mãos a quererem cortar-se por já não saberem: Como é que se protege? Como é que se faz? Tudo se rasga, nada satisfaz.
E eu tentei vezes a mais remendar-me porque o vento era tortura contra outros corpos que não o meu, e eu tentei vezes demasiadas estender-me porque outros corpos eram maiores mas maior era a língua a querer desenrolar-se, e eu tentei mais vezes do que posso contar ter palavras para desfiar, como se fossem vísceras, para mostrar: estou aqui, podes matar. Estou aqui.

IV. Quando as palavras se alojam na parte da frente do crânio sei que tu estás do outro lado, em paralelo. E há uma dor e essa dor parece dizer: já chega por hoje.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Da convivência com o diabo.


É ele que dorme aqui - eu não tenho culpa.
É ele que respira muito fundo e te suga e te enrola e te devolve mais tu - tu não tens culpa.

Não. Quão difícil é dizer não? Não vou falar mais contigo, não tenho que te contar, mais. Mais, porque não há mais tu e não é só ele e as desculpas não são bonitas nem são feias, são só desculpas. Qualquer coisa feita para encher um espaço que não devia ser cheio por elas - qualquer coisa que não serve, qualquer coisa que existe para nada.
Existes em mim para nada - há muito vazio em ti e em ti não posso existir eu porque há palavras que tenho que dizer, e perguntas que tenho para fazer e sorrisos muito extensos ou bafos muito longos. - Existes em mim para nada e como desculpas que és tu e são elas que são tu não serves.
E não é ele que dorme aí, porque eu conheço-o e ele é em mim e em mim é violência que não te dói na pele que usas como casaco porque a tua pele é mais casaco que pele - Está frio; o teu frio é desculpa. A coragem é sair nu em plena rua e olhar nos olhos de quem não sabe olhar nos olhos porque o frio é desculpa. Usam casacos.

É violência em mim e violência em ti e violência em nós animais e nós mais animais que os animais - Focinhos arreganhados que dizem "o amor é cuidar", focinhos franzidos que dizem "deixa-me amar", garras apontadas ao coração a dizer "Deixa-me tocar-te". - O toque. O toque que é violência quando no seu extremo quer guardar, que não é o mesmo que cuidar que não é o mesmo que amar. Amei e deixei à deriva porque era à deriva que queria ser deixado - Somos todos selvagens se não aprendermos que o somos. Somos todos selvagens quando clamamos racionalidade. E  a racionalidade é a maior armadilha e não se adivinha e não se pode saber. ( ri-te atrás dos meus ombros desnudos, ri-te atrás dos meus olhos abertos, ri-te, ri-te, ri-te como se fosses enlouquecer)

É violência em mim, saber que és nada, agita-me e deita-me à lama e aos lobos que são as minhas mãos  nos meus ombros a dizer: Em baixo é mais cómodo. Em baixo, as risadas dos palhaços que não se sabem palhaços e se pensam idolatrados. - Idolatrar; querias-me como se querem razões para o ego. Mas eu sou razões para se chorar e se esquecer que a vida é máscara e tu tens frio. Mais nada - nada a dizer. E a primeira vez do meu silêncio a confortar é a última vez do teu silêncio a ser violência e desculpas para me entreter.

Como quem diz: Estou cansada de ti. Como quem diz: preciso de me sentar em frente da televisão e passar canais para me esquecer. - Passar canais para nao te ver a não ser. Não é o que custa mais? Ver alguém a não ser. E estou cansada de ti e preciso de me sentar em frente da televisão e ela é pouco e é violência daquela que rasga e substitui por plástico e eu quero pele para aquecer. Só pele.

Não. Engole-se mais facilmente quando vem de outra língua e é chapada - Ninguém gosta da loucura, quanta loucura há na mão que descura o próprio rosto!! Ah, se ao menos tu soubesses quão senil é mostrar dentes contra a carne e não ter uma razão.
Ninguém gosta da loucura, mas na mão que arranha a própria  palma a loucura é mais sã.
Não, tenta enfiar a tua voz na tua garganta e sente-te sufocar - Há mais razões em nós para o auto-ódio, basta que te conheças. - E nunca, no fundo, conheces ninguém que não tu. - E tu?E tu, tu?...és só pele e mais que pele. Tens mãos que te arranham pernas e braços e coração se pudesses, e coração.

Mas a violência é o que se esconde debaixo da roupa e dentro da garganta e por baixo das unhas e ao lado da razão. Na mão que toca uma face que é tua e que te revira na oração - A esperança a ser metáfora e a metáfora é mentira bonita. Procura um ponto de reconhecimento num reflexo contrário e o reflexo é já mentira antes de ser. A violência a ser beleza para entreter, e as tuas razões a despirem-me do que sou porque dá jeito eu não ser.
Não. NÃO. n-ã-o. - enche-te de casacos e deixa-me ver televisão.

É ele que dorme aqui - eu não tenho culpa. Não aceita um não como desculpa. Fala-me destas coisas que falam de ti e é como se dissesse: não aceites a violência por cuidado. Não cantes a quem se ri, se ri, se ri.
É ele que respira muito fundo e te suga e te enrola e te devolve  mais tu - Tu não tens culpa. Não aceitas que exista mais que casaco a servir de pele e palavras que não gargalhadas enlouquecidas.

É ele que dorme aqui no cerne mais sabedor que posso perceber: o diabo como conselheiro e desde que sei o diabo, aprendi a não o ser.





sábado, 26 de outubro de 2013

Agora Não


 Podias ter dito - Agora não. Em alguns casos, tantos tantos, é necessário dizer agora não. Podes nem ficar aqui, sentadinha no sofá à esquerda, entretida a ler o que quer que seja que te entretenha e te deixe sair, mas podias ter dito agora não. - E te deixe sair.
Te deixe ir embora por momentos, porque tu queres sempre ir embora dizes que nem sabes bem para onde.
Sempre achei que era uma questão de andares um pouco, passeares, quem sabe veres as flores no jardim ou só o sol, ou só chegar perto da janela (teres a certeza que o mundo se move, mesmo que tu não), mas afinal tu não me falavas de lugares. Tu nem me falavas, deixavas-me assim a adivinhar pelo teu sono em demasia e pelas tuas lágrimas escondidas que encontrava entre papéis amarrotados, contas por pagar, ou gatafunhos desses que deixas para não te deixares a ti.
E eu adivinhava, adivinhava-te a voz cheia de energia, a voz a querer esconder a voz que se te entalava na garganta como surpresa atrás das costas - Deixa-me ir embora de mim.
E depois precisava de parar uns momentos para perceber que a tua voz de criança não era a tua voz a dizer deixa-me ir embora de mim. Era a tua voz a dizer-me - Não me faças mais perguntas.
Podias ter dito agora não. Mas não dizias nada e eu adivinhava-te com a certeza de que um dia perceberia os teus contornos e que a surpresa que escondias com tanto afinco me surpreendesse.

Era urgente. - Espera, espera só, é urgente. Não mo dizias mas eu podia vê-lo nos teus braços que tinham a maior força do mundo para todo o mundo, menos para ti. E por isso ali estavas, ali ficavas, ali eu adivinhava e perguntava - Porque é que é urgente? Onde é que é urgente?
Porque do teu corpo ancorado no meu, do teu corpo cravado no meu, do peso da tua não força a fazer força na minha percebia só que existia um lugar qualquer em que era urgente. Só aí havia lugar, onde era urgente.
Deixa-me ir embora de mim - entalado na tua garganta, a esmagar-me os membros (por me agarrares, por nao te agarrar o suficiente), a esmagar-te contra todos os lugares para que podias ir. - Nenhum lugar chegaria, sem palavras, era urgente e nenhum lugar chegaria.
E eu. Eu aqui, nunca sentada no sofá à esquerda, nunca sossegadinha porque tu. Porque a tua urgência. Porque. Só porque.
E porque bastava-me até calares - Deixa-me ir embora de mim.

Diz-me o que fazer. Onde pôr os braços - como é que te tiro se não te escangalhar, estragar toda? Como é que te salvo sem te condenar? - onde pôr a cabeça, o que agarrar em ti, o que afastar em ti, onde pôr a vida.
-Dentro do bolso, bem escondida - e era a tua voz de criança e nunca de criança e eu não sei de qual delas tinha mais medo.
 Podias ter dito - Agora não. Mas deixaste-me adivinhar e agora, és real ou de brincar?
O que é que te dói, és daquelas perdidas ou dás para consertar? - Queria, queria tanto. Podes tirar-me a cabeça e colocá-la no lugar? - Podias ter dito, agora não.
Mas para ti era o sofá à minha esquerda, a expressão fechada, sossegadinha, entretida a ler.
E eu a precisar de parar para perceber onde é que andava essa tua voz que me morria nos braços quando a tua não força me queria fazer morrer a mim. Eu a precisar de parar para não te deixar ir embora de ti, sem querer.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Elegia


1. Todas as horas que passaram foram horas de espera. Foram horas a falar com as cadeiras e as estantes - horas a fingir que dormia porque acordar é difícil como tirar um espinho do dedo.
 Foram horas de espera, as que respirei até não existir mais espaço nos pulmões: só mais um pouco. Só mais esta vez. E eu respirava: fecha os olhos, cerra os dentes.
 E eu respirava, e quando respirava a cavidade em mim doía. Doía-lhe o estômago por ter misturado perdas com a necessidade perder. Não se romantiza a perda quando a necessidade de perder é maior.
 Têm que existir palavras duras em quem sabe de que são feitas as horas de espera.- A cavidade doeu e porque as estantes não falam de volta. E o que é que isso interessa?

2. Já desejei que morresses. Já desejei que nem a tua morte, se morresses, eu conseguisse lembrar. Porque a morte é algo que nos fica a cirandar com as suas perguntas pouco físicas, as suas perguntas como nevoeiros e fumos e ideias que nos fazem pesar o lóbulo occipital, e chega-me o teu peso. Chega-me e sobra-me e pudesse eu fazer contigo o que se faz com os restos do dia anterior- Deitar fora. Deitar fora como restos que são. Deitar fora porque não interessa.
E se interessar? - já desejei que morresses. Não fiques chocado, não te doa. (nada te dói e tudo te dói não é verdade? És desses de armadura e elmo que deitam sorrisos ao ar como se esses sorrisos não fossem como camisolas. E esses sorrisos são como camisolas)
Não desejei ver-te. Não desejei tocar-te, ai de mim. Ai de mim se a tua face se apagasse e os meus olhos a pudessem beijar assim, com demora. Com lágrimas a serem vistas porque justificadas.
Ensinaste-me sem me dizeres uma única vez que as lágrimas não se mostram, que as lágrimas não se mostram. Porque não justificadas, porque nunca justificadas.
Ai de mim se lacrimejar. - Já desejei que morresses, como morrem as ondas na praia - suavemente, a desvanecer, a ir embora para se perder sem uma só pessoa para o notar.
A beleza. A beleza mole, derretida porque estendida sobre sofás e camas e lugares em que o corpo não precisa fingir ter força, que seria morreres em mim como as ondas na areia. Sem arranhar, sem puxar nem empurrar. A desvanecer devagar - E se interessar? - só a desvanecer. Ai de mim se lacrimejar.

3. Não me vejas. Podes olhar, parar. Sei que nao me olhas, por isso podes olhar, mas não me vejas. Não me toques com pupilas enganosas e cheias de ardis.Com súplicas pecaminosas enquanto a tua boca não faz ideia do que diz.
Para ti só já tenho o silêncio cerrado de quem não sabe o que te dizer. De quem sabe que arranjar-te palavras cansa tanto quanto cansa tentar virar o guarda-chuva quando enrolada num temporal. Ficar ali, entre a água e não ter frio. - foi assim que aprendi. Ficar entre as gotas e saber em cada gota uma razão para não as afugentar.
Podes olhar, mas não me vejas. Não quero que entres por aqui adentro nunca mais, que toques nos muros dos meus quintais e me pises as ervas daninhas. - não são ervas daninhas, sou eu. Sou eu!
Não me chames, como se vizinhos. Moras no final de uma rua que desconheço, os prédios são altos demais, as luzes sempre apagadas ou acesas demais. As luzes provenientes de bolas de espelhos que não param de rodar no mesmo ritmo alucinante a que sorris. Sorrisos camisolas. Sorrisos que como tu outros dão, outros compram, outros vestem, simplesmente para não se sentirem nus.
(mas tu és daqueles que vestem armaduras e usam elmos não és? nada te dói e tudo te dói, eu sei.-Ai de mim se interessar. )

4. Foram horas de espera. Todas as horas em que punha a mesa, e me virava para encontrar o lado frio da almofada. Quente é febre. Febre sou eu a subir as paredes sem mover uma ínfima parte do meu esqueleto pesado. Pesado porque cheio. Cheio de mim e cheio de ti, a quem já desejei a morte.
Quando respiro, a cavidade mais profunda de mim dói. Encho a boca, expulso o ar. "Fuuuuu..."
E não chega.
Já desejei que morresses. Morre devagar, desvanece. Não me vejas. Não olhes sequer, se te incomodar, se te der trabalho. Eu não queria. Se te der trabalho, não olhes sequer, não me vejas.
Já desejei que morresses, desculpa. - É que tu pesas tanto. Tu e a tua armadura e o teu elmo. E o que é que isso interessa? Me interessa? Te interessa?
Ai de mim se lacrimejar.

sábado, 12 de outubro de 2013

Não se é chão.


 Cala-te. Era assim quando lhe dizia, se lhe dizia, Cala-te. Acredito que o dissesse para não ter que dizer mais e usar palavras em excesso. - Porque as palavras também crescem, quando nós crescemos. Enquanto crianças elas podem espalhar-se pela sala e pelo quarto para amigos que não existem senão em nós, mas quando crescemos só um "ah" já é demais; Um "gosto muito de ti" é como um comboio sem fim que descarrila. Quando crescemos todas elas devem estar condensadas entre mãos vincadas da força, principalmente, para que não fujam para pessoas que existem em demasia fora de nós, dentro de nós, entre nós.
Cala-te. Quase que lhe implorava - era nesse género, como quem diz "mais não, por favor" - mas ele não percebia essa prece a um deus pequeno. A um deus que não era misericordioso e nem podia ser (se é que algum o é), mas que de pequeno poderia até a ouvir. Ele percebia, talvez (como é que ela podia saber?) um "não quero saber mais disto".
E até hoje ele não faz a mais pequena ideia o quanto ela gostava que o Cala-te significasse isso mesmo. Essa indiferença. Porque a indiferença é silenciosa e não precisa de um Cala-te ou de um "mais não por favor". Precisa apenas de umas costas que não viram e não vergam e ela sabia disso.
Sabia que sentenças e exclamações só se oferecem a quem nos dá testemunhos de vida que caibam nos gestos, ainda que os gestos não sejam largos. Gestos apertadinhos, gestos que aproximam do peito porque o peito é sempre o ponto de partida e de chegada. (até na concepção mais cirúrgica, mais natural).

 Quando chegou as costas dela já estavam habituadas a cadeiras altas. A sua habilidade para fingir que estava sentada era já a de alguém que o fez a vida inteira - a passividade do vazio, os ombros no lugar, a pose impenetrável. Uma estatueta móvel e ainda mais pesada por isso. - o nosso material é o mais pesado de todos os materiais, não porque consistente, mas porque acumulado.
Ele não sabia e não sabe e quando descobrir ela já não vai dizer Cala-te. Ela já não vai dizer nada porque não se oferecem sentenças e exclamações, mas ainda pior é pedi-las.
 Não se pede a mão a quem te dá as costas, pensava sentada. Sempre sentada, costas direitas, corpo rijo. Rijo, porque é na rijeza que os olhos se abrem - quase como uma estalada. Ou uma cabeçada numa parede. Primeiro fica tudo turvo e entorpecido e depois dói para caraças. Dói para caraças, claramente. Claramente a parede era rija e a mão também. Claramente não havia nada a fazer senão endireitar as costas e manter a pose impenetrável, o deus pequeno tinha falhado e a sua prece surda, tão audível (Cala-te como quem diz "mais não por favor") também.
Está tudo bem. Ele não sabe que as palavras são grandes demais e estendem-se muito para além do que a língua pode conseguir e abre os braços, e tenta virá-la, revirá-la, convencê-la. Mas gestos largos vergam costas, e costas vergadas deixam os dedos tocar no chão.
Não se espezinha o lugar que acaricias, não se cospe no prato onde se come.
Não se deixam as costas vergar porque não se é chão.

Tenho as mãos fechadas, vincadas a vermelho sangue, vermelho pele e as costas direitas numa pose impenetrável. Todos os meus gestos são apertados.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Sobre o brilho, um


 Não sabes
 Mas eu já gastei
os suspiros.
 Noutras vidas
 E noutros abrigos,
que deixavam passar a chuva.
E nos abismos que
abres
Entre o que sei ser e para ti serei
Passas sempre desenhando uma linha
Curva
Sem me tomar nas provas já tidas.

Se te tivesse que falar
Sobre o que em mim está
mal,
Dir-te-ia
Que sou sobretudo pouco nítida
Nos contornos
E desencontrada nos encontros
Que tornam os dias mornos.
Falar-te-ia de como se pode cair
Nos meus olhos castanhos,
Tão habituados a danos
E a abraçar estranhos
(tanto que os torno queridos)
Mantendo os braços caídos.

Os meus dedos não se estendem
E as minhas mãos não se abrem
E com as palavras toco
A fugir do que os teus olhos sabem.
Fechados em profecias que não adivinho
E em história longínquas
de sentido oblíquo
Que embebedam tanto quanto vinho.

Pés que se trocam
estaticamente
Enquanto a postura
te mente
E o que se sente
Fique girando como fumo disperso
A dissolver o medo do apego.

Não sabes
Mas eu já gastei o choro
Noutros lençóis e
noutros ombros
E por isso não te deixo
Visitar
Os escombros
Desses temporais intensos.
Não sabes
Mas as pequenas marcas na tua pele
São campos imensos
De uma só constelação
Com estrelas como faróis.

Nos teus ossos
Anzóis,
Sangram-me os dedos
em alegorias que me embalam.
Pudera eu contorná-los
Sem medos,
Cada centímetro um metro
de caminho para fugir.
Cada canto um lugar
A encurralar.
Nos teus ossos,
os meus ossos a querer descansar.

Não sabes
Mas eu já gastei
a calma da minha cintura
a ser só cintura
E do meu peito
a ser só peito
E das minhas pernas
a serem só pernas
E dos meus pulsos
a serem só pulsos.
E hoje tudo é ansioso,
ruidoso no seu cerne
E pela manhã que antecede
as marcas negras são soluços
E mossas eternas
na minha armadura.

Se te tivesse que falar
Sobre quando me senti certa
Dir-te-ia
que vivi sempre a sufocar
Mas enrolada na tua voz
Consegui respirar.

Queria que soubesses:
Tens o brilho que não se pode,
 só porque é a vontade,
Gastar.







sexta-feira, 26 de julho de 2013

Comprimidos para dormir


 O mundo acaba todos os dias. - Não sei dizer mais.
 Mas o que sei,
       é que o mundo acaba.
O mundo acaba todos os dias.

O que é que fazemos com o que ficou por fazer? - Aceita-se que o almoço seja mais cedo. Que o despertador não toque nas horas esperadas. Aceita-se que alguém entre na nossa casa sem limpar os pés, e adiamos as despedidas já com a ânsia de lavar o chão.
O que é que se faz com aquilo que se devia ter feito? Adormece-se antes da hora e acorda-se depois da hora. E a vida passa e nada se faz com o que devia ser feito, a não ser deixar morrer, até morrer.


Não se descansa desde o primeiro choro à ultima lágrima - Gostava de saber dizer mais.
Por exemplo,
Como se engole em seco sem sentir o estômago estreitar-se,
E como se come silêncio sem sufocar.
Mas o que sei,
                     é que as almofadas não renovam a alma
como as noites não renovam a vida.
Não se descansa desde o primeiro choque à ultima felicidade.

Não é o relógio que queremos parar. - É a cadeia de movimentos que nos antecede e sucede. São as palavras que não pensámos bem e as mãos a acenar que se mordiam interiormente para deixar soltar as pernas em vez de si. Queremos a estaticidade e o vazio que anexa a si, aquele espaço em que a cabeça se expande e dilata e é ar a desaparecer. - Tudo o que somos em espirais de calma, em espirais de desapego que se misturam com o infinito.
É nesses vácuos que podemos respirar - no momento seguinte descobrimos pelo vivemos. Por quem vivemos. No momento seguinte descobrimos a calma da prontidão para a morte. O sossego da paz.

Os discursos perdem o seu encanto - Não sei qual o momento
em que passam a entulho.
Mas um dia, são só ruídos habituais
Como a máquina de lavar loiça
E a televisão ligada a passar canais.
O que sei é que
Vozes desconhecidas a calar
as que desejamos nunca ter conhecido,
É um conforto que nos mantém sãos.

O mundo acaba todos os dias porque nós o estreitamos com gestos circulares e significados redundantes.
Acaba, principalmente porque o corpo pede o repouso do que parecem milénios de memórias e lixo guardado. - Somos como gavetas da secretária. Somos mistura de papéis meio amarrotados e cruzes partidas. Canetas esventradas e flores secas. Coisas com uma carga emocional demasiado grande ou demasiado pequena para que não as lembremos ou não as queiramos lembrar.
Nunca fomos animais corajosos.- Somos animais empurrados.

 O mundo acaba todos os dias. - Não sei dizer mais.
 Gostava de saber dizer mais.
Por exemplo,
Qual o momento em que se aprende
 A viver em paz
Com os finais.




sábado, 16 de fevereiro de 2013

Silêncio.



Quero falar com alguém. Já queria falar com alguém ontem quando não conseguia adormecer.
Era tarde; é sempre tarde quando eu não consigo adormecer e acho que se falar com alguém o sono chega. Mas na verdade sei que o sono não chega e na verdade sei que não há nada para dizer a ninguém.
Hoje as palavras já não me chegam para explicar o estado mais básico que sinto vir-me de dentro para fora, como uma doença que se vê na pele (como se ficasse amarela ou verde ou sem cor): estou triste. Estou triste. Duas palavras e a necessidade extrema de me afogar.

Houve um tempo em que  a tristeza era feita de momentos e horas. A tristeza era feita de uma sensação de líquido quente a passar-me a garganta. Demorava tanto tempo a descer, fazia-me tremer e gritar. Fazia-me correr às voltas no quarto como se num descampado de fronte para o horizonte. - Tocar no nada. E pôr as mãos em tudo.
Achava sempre que se corresse de encontro ao horizonte ia chegar a outro lado em que a minha tristeza não fosse minha. Mas eu ia contra as paredes, eu via o branco e sabia que um dia as palavras não iam chegar. E cansava-me, como se houvesse de que estar cansada.
Era o cansaço mais intenso que tinha experenciado. O cansaço de quem não dorme mil anos, e mil anos procura por algo que não encontra e não sabe o que é.
Nunca vai saber.
(e por isso mesmo não consegue adormecer)

Ontem quando quis falar com alguém, não o quis realmente. Era só a necessidade de abrir a boca para deixar sair a tristeza. - Ela alojou-se na garganta e tornou-a seca. Levou os seus filhos para o peito e tornou-o ainda mais seco que a garganta. Tornou todos os sentimentos papel reciclado que magoa a pele.
A minha pele está cheia de cicatrizes e ninguém as vê. - Eis a beleza. A beleza que abraço como se outro género nunca pudesse chegar-me. Não é brilhante, esta beleza, nunca o vai ser. Esta beleza é áspera e cinzenta.
É a beleza de quem quer chorar e não consegue porque a tristeza já não é líquida e já não pode escorrer.
A tristeza fez-se pedra e pesa. Agora quando abro a boca só sai silêncio - enrolo-me nele como se num cobertor.
Não sei, continua a fazer frio.

Gostava de conseguir chorar. Talvez se conseguisse chorar o sono chegasse.

Perguntas. Tenho a cabeça sintonizada em perguntas que não faço a ninguém. Porque ninguém tem a resposta e eu não tenho energia suficiente para as fazer senão a mim. Ser auto-suficiente em sentimentos passou a ser uma forma de viver e não um estado de guarda.
Sou de mim, tudo o que os outros deveriam ser. Faço de mim tudo o que eles não conseguem fazer. E no entanto rasgo-me para chegar a ti. Abandono-me para que não te abandones.
Acabamos os dois onde não sabemos com a escuridão à nossa cabeceira, como familiar que nos vê morrer.
Ontem quis falar contigo e dizer-te que nestes dias tenho morrido muito. Tenho ficado sentada como que invisível na passividade dos dias e passividade me tenho tornado. Como se dentro de mim houvesse um oceano de águas escuras e espessas que se movem tão lentamente quanto o modo de câmara lenta. E eu fecho os olhos e deixo-me estar, enrolada em ondas que não me salvam e não me condenam completamente.
Se há um inferno, deve ser isto. Não ser capaz de viver e não ser capaz de morrer.



Tudo demasiado do que há, tudo demasiado pouco. - Ter os pés frios e a alma enjoada. Sem saber de quê nem porquê; mas era tarde. As palavras não chegavam e hoje, à suposta luz do sol, continuam a não chegar.  E não me chegam as músicas, nem os quadros. Não me chegam os movimentos das mãos nem a capacidade de com elas dizer adeus. Não me chegam os livros, nem as conversas. Em tudo me anulo na justificação de algo que não sei o que é. Para todos acho que preciso de ter justificações e esqueço-me que somos como ilhas longe de terra substancial.
Não existem barcos onde vivo. Não existe quem tenha a coragem de nadar.

Estou triste. Duas palavras e a vontade extrema de me afogar em mim. Como cair para sempre e sentir o corpo leve. Ontem achei que se falasse com alguém ia conseguir adormecer; hoje pediram-me que falasse e eu não sabia o que dizer. Pudesse o meu peito ser uma caixa que se abre. Pudesse alguém conseguir abri-lo e tirar a rocha que em cima dele se sente abrigada.
Podia jurar que chove dentro de mim.- E a suposta luz do sol não abre espaço a que eu possa dizer: estou triste.

Esta noite eu não vou conseguir adormecer- Talvez queira conversar com alguém. Ou só ficar em silêncio.
Sei que estou cansada, um cansaço de mil anos. De mil anos na procura de algo que nunca se encontra.
É só cansaço. Cansaço que vai durar para sempre.

Se há um inferno, deve ser isto. Não ser capaz de adormecer e não ser capaz de acordar realmente.



terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Despojamento





Quero dormir e fingir que esta noite dura para sempre.
Ser feliz é deixar-te na berma da estrada para morrer e fugir enquanto não morres, para não morrer contigo.
Já não és a minha história.
Deixei-te num lugar onde nunca mais se regressa porque se esquece o caminho.
Desta vez ninguém  vai ressuscitar.



Memórias são coisas que não nos querem esquecer. Memórias são o nosso desejo de esquecer a revoltar-se contra nós, para dentro.

Já não tenho forma de falar contigo. As palavras são fracas, tão fracas quanto a tua fraqueza.

Quero dormir e fingir que esta noite dura para sempre.
 Esta noite deixei-te na berma da estrada para morrer e fui-me embora.
 Viva. Nunca me senti tão viva.

domingo, 20 de janeiro de 2013

21.



"I’ve buried you
every place I move
you keep ending up
in my shaking hands."
Em cada palavra te deixo, como se nelas
pudesses viver para sempre.
Fechado.

Deixo-te, em cada silêncio que pareça correcto
E
Ninguém sabe o quanto de mim
Deixei
Em cada palavra onde te deixo.

Em cada olhar te perco
E faço por te perder.
Como se fosse mais fácil
Ver-te a ver
Que sou eu que te deixo.

Em cada silêncio que pareça correcto.
E os teus nunca pareceram.

Em cada palavra te deixo, como se nelas
pudesses viver para sempre.
Rasgo o papel, deixo-o arder.

"I have buried you
with my shaking hands
you keep ending up
every place I’ve been"


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Hot tea and nowhere to look at


Maybe today it's just not the right day to wear those pants. Maybe it's too hot or it's too cold. - Who knows? Maybe today, you are just not yourself, and those pants don't fit you.
 Don't be scared. Don't think it's urgent that those pants fit you. Just think you have a day off to be whoever you always wanted to be - 'Cause we all do, sometimes. We all want to be someone we are not. Sometimes, even when our pants fits us and it's the right day to wear them.

One minute has 60 seconds. In one minute you move your chest without stopping. You move your eyes and you can be in a thousand different places. In one minute you can move your hands and change the air around you. You can drop something. You can break the jar at your right or hit the furniture at your left and be bruised.
 In one minute your life it's a hundred other lives you will never know it is. - Cause before there is a all, there are so many little pieces. So many little options. So many breaths to take, and walls or windows to be looking at without even seeing it, so many moves your hand can make - Like hold someone. Like letting someone go. Like scratching your arms or hold your body. Like waving to the person you most love in all world. - One minute has 60 seconds. Every second you can be doing it all. Or you can be doing nothing but breathing so deeply you can almost feel your lungs in your throat.

Maybe today you need that. Maybe tomorrow you won't, but today you do. Have some time to die. Some time to feel your lungs touching your throat. Don't be scared, there will be plenty of opportunities to feel like the world is ending. But that doesn't mean it's. Maybe who's ending is you. Maybe you have to buy another pants.
Who knows, maybe more colorful or less. More tight or larger. - Who knows? You can always move your hand in the first second of a minute to say goodbye and not care anymore about the other 79 seconds because it hurts too much. But that won't make them disappear and that won't make them go faster, like you want it to. Or slower.

Don't be scared. We all need tears sometimes. Even if it's not hurting, even if it's hurting like hell and you think this is all bullshit. Probably it is. - Who knows? Does that even matter? Don't be scared. You can cry about all the bullshit you want, even if it really is just bullshit.
At least, it's something.

Maybe today it's just not the right day to wake up, to take a bath and brush your hair smiling. You don't always have to smile. Or to wake up feeling like taking a bath and brushing your hair. You can just sit in your bed and pretend you are asleep, even awake. Get some rest of being alive, 'cause being alive can be very tiring from times to times.
Times. Times after times, it'll be okay if you don't feel like having your breakfast or talking to your best friend.
You need to talk to you first, times after times. You need to listen to you for days. Weeks. Or even months - Who knows? It takes so many time, so many days without moving to know where you are.
So many days you will be scared, feeling like if you move one finger all your body will explode and you will be everywhere. And if you end up thinking about this over and over again you'll desire that explosion - At least you can fly.

One hour has 60 minutes. One minute has 60 seconds.
You may want to die from 15 to 15 minutes. You may want to stay alive for the rest of your life.
You can say you'll always be late while you let the seconds go by without realizing it. Don't you always do it?

Maybe today it's just not the right day to go to the post office and wait for a letter. To wait there, sitting in the nothingness. To wait for news about what it's deep in you. Maybe it's too hot or too cold.
Maybe you need some more days and more weeks to hear from you.
Who knows? - It doesn't take much long until you can fly. Don't be scared. We all desire to fly sometimes.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013



 Faz algum tempo que eu não ficava com a boca tão seca e os lábios tão gretados. Está frio quando é noite.
 As minhas mãos entram boca adentro, garganta a baixo, vasculham um lugar qualquer onde acham que as palavras estão. Mas elas não estão. Está frio, e eu tremo tanto, porque está frio.
 Mas é dia.
 Não há palavras mas há frio dentro dos ossos.

Faz algum tempo. Faz sempre algum tempo e o tempo parece sempre o mesmo.
Não acho que estejamos a fazer isto correctamente. O que guardamos pesa nas costas.

E está frio. Para lá da noite, está frio dentro dos ossos.