quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Elegia


1. Todas as horas que passaram foram horas de espera. Foram horas a falar com as cadeiras e as estantes - horas a fingir que dormia porque acordar é difícil como tirar um espinho do dedo.
 Foram horas de espera, as que respirei até não existir mais espaço nos pulmões: só mais um pouco. Só mais esta vez. E eu respirava: fecha os olhos, cerra os dentes.
 E eu respirava, e quando respirava a cavidade em mim doía. Doía-lhe o estômago por ter misturado perdas com a necessidade perder. Não se romantiza a perda quando a necessidade de perder é maior.
 Têm que existir palavras duras em quem sabe de que são feitas as horas de espera.- A cavidade doeu e porque as estantes não falam de volta. E o que é que isso interessa?

2. Já desejei que morresses. Já desejei que nem a tua morte, se morresses, eu conseguisse lembrar. Porque a morte é algo que nos fica a cirandar com as suas perguntas pouco físicas, as suas perguntas como nevoeiros e fumos e ideias que nos fazem pesar o lóbulo occipital, e chega-me o teu peso. Chega-me e sobra-me e pudesse eu fazer contigo o que se faz com os restos do dia anterior- Deitar fora. Deitar fora como restos que são. Deitar fora porque não interessa.
E se interessar? - já desejei que morresses. Não fiques chocado, não te doa. (nada te dói e tudo te dói não é verdade? És desses de armadura e elmo que deitam sorrisos ao ar como se esses sorrisos não fossem como camisolas. E esses sorrisos são como camisolas)
Não desejei ver-te. Não desejei tocar-te, ai de mim. Ai de mim se a tua face se apagasse e os meus olhos a pudessem beijar assim, com demora. Com lágrimas a serem vistas porque justificadas.
Ensinaste-me sem me dizeres uma única vez que as lágrimas não se mostram, que as lágrimas não se mostram. Porque não justificadas, porque nunca justificadas.
Ai de mim se lacrimejar. - Já desejei que morresses, como morrem as ondas na praia - suavemente, a desvanecer, a ir embora para se perder sem uma só pessoa para o notar.
A beleza. A beleza mole, derretida porque estendida sobre sofás e camas e lugares em que o corpo não precisa fingir ter força, que seria morreres em mim como as ondas na areia. Sem arranhar, sem puxar nem empurrar. A desvanecer devagar - E se interessar? - só a desvanecer. Ai de mim se lacrimejar.

3. Não me vejas. Podes olhar, parar. Sei que nao me olhas, por isso podes olhar, mas não me vejas. Não me toques com pupilas enganosas e cheias de ardis.Com súplicas pecaminosas enquanto a tua boca não faz ideia do que diz.
Para ti só já tenho o silêncio cerrado de quem não sabe o que te dizer. De quem sabe que arranjar-te palavras cansa tanto quanto cansa tentar virar o guarda-chuva quando enrolada num temporal. Ficar ali, entre a água e não ter frio. - foi assim que aprendi. Ficar entre as gotas e saber em cada gota uma razão para não as afugentar.
Podes olhar, mas não me vejas. Não quero que entres por aqui adentro nunca mais, que toques nos muros dos meus quintais e me pises as ervas daninhas. - não são ervas daninhas, sou eu. Sou eu!
Não me chames, como se vizinhos. Moras no final de uma rua que desconheço, os prédios são altos demais, as luzes sempre apagadas ou acesas demais. As luzes provenientes de bolas de espelhos que não param de rodar no mesmo ritmo alucinante a que sorris. Sorrisos camisolas. Sorrisos que como tu outros dão, outros compram, outros vestem, simplesmente para não se sentirem nus.
(mas tu és daqueles que vestem armaduras e usam elmos não és? nada te dói e tudo te dói, eu sei.-Ai de mim se interessar. )

4. Foram horas de espera. Todas as horas em que punha a mesa, e me virava para encontrar o lado frio da almofada. Quente é febre. Febre sou eu a subir as paredes sem mover uma ínfima parte do meu esqueleto pesado. Pesado porque cheio. Cheio de mim e cheio de ti, a quem já desejei a morte.
Quando respiro, a cavidade mais profunda de mim dói. Encho a boca, expulso o ar. "Fuuuuu..."
E não chega.
Já desejei que morresses. Morre devagar, desvanece. Não me vejas. Não olhes sequer, se te incomodar, se te der trabalho. Eu não queria. Se te der trabalho, não olhes sequer, não me vejas.
Já desejei que morresses, desculpa. - É que tu pesas tanto. Tu e a tua armadura e o teu elmo. E o que é que isso interessa? Me interessa? Te interessa?
Ai de mim se lacrimejar.

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