sábado, 12 de outubro de 2013

Não se é chão.


 Cala-te. Era assim quando lhe dizia, se lhe dizia, Cala-te. Acredito que o dissesse para não ter que dizer mais e usar palavras em excesso. - Porque as palavras também crescem, quando nós crescemos. Enquanto crianças elas podem espalhar-se pela sala e pelo quarto para amigos que não existem senão em nós, mas quando crescemos só um "ah" já é demais; Um "gosto muito de ti" é como um comboio sem fim que descarrila. Quando crescemos todas elas devem estar condensadas entre mãos vincadas da força, principalmente, para que não fujam para pessoas que existem em demasia fora de nós, dentro de nós, entre nós.
Cala-te. Quase que lhe implorava - era nesse género, como quem diz "mais não, por favor" - mas ele não percebia essa prece a um deus pequeno. A um deus que não era misericordioso e nem podia ser (se é que algum o é), mas que de pequeno poderia até a ouvir. Ele percebia, talvez (como é que ela podia saber?) um "não quero saber mais disto".
E até hoje ele não faz a mais pequena ideia o quanto ela gostava que o Cala-te significasse isso mesmo. Essa indiferença. Porque a indiferença é silenciosa e não precisa de um Cala-te ou de um "mais não por favor". Precisa apenas de umas costas que não viram e não vergam e ela sabia disso.
Sabia que sentenças e exclamações só se oferecem a quem nos dá testemunhos de vida que caibam nos gestos, ainda que os gestos não sejam largos. Gestos apertadinhos, gestos que aproximam do peito porque o peito é sempre o ponto de partida e de chegada. (até na concepção mais cirúrgica, mais natural).

 Quando chegou as costas dela já estavam habituadas a cadeiras altas. A sua habilidade para fingir que estava sentada era já a de alguém que o fez a vida inteira - a passividade do vazio, os ombros no lugar, a pose impenetrável. Uma estatueta móvel e ainda mais pesada por isso. - o nosso material é o mais pesado de todos os materiais, não porque consistente, mas porque acumulado.
Ele não sabia e não sabe e quando descobrir ela já não vai dizer Cala-te. Ela já não vai dizer nada porque não se oferecem sentenças e exclamações, mas ainda pior é pedi-las.
 Não se pede a mão a quem te dá as costas, pensava sentada. Sempre sentada, costas direitas, corpo rijo. Rijo, porque é na rijeza que os olhos se abrem - quase como uma estalada. Ou uma cabeçada numa parede. Primeiro fica tudo turvo e entorpecido e depois dói para caraças. Dói para caraças, claramente. Claramente a parede era rija e a mão também. Claramente não havia nada a fazer senão endireitar as costas e manter a pose impenetrável, o deus pequeno tinha falhado e a sua prece surda, tão audível (Cala-te como quem diz "mais não por favor") também.
Está tudo bem. Ele não sabe que as palavras são grandes demais e estendem-se muito para além do que a língua pode conseguir e abre os braços, e tenta virá-la, revirá-la, convencê-la. Mas gestos largos vergam costas, e costas vergadas deixam os dedos tocar no chão.
Não se espezinha o lugar que acaricias, não se cospe no prato onde se come.
Não se deixam as costas vergar porque não se é chão.

Tenho as mãos fechadas, vincadas a vermelho sangue, vermelho pele e as costas direitas numa pose impenetrável. Todos os meus gestos são apertados.

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