terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Já chega por hoje.


I. Quando as palavras se alojam na parte da frente do crânio começam a doer como se roídas por ratos vagabundos. - Sem qualquer tipo de intenção, porque sim. Porque os ratos têm fome e porque a vida não lhes dá de comer.
As palavras alojam-se no crânio por serem demais - Empurram-se umas às outras para chegar, para caber, para significar - ou por serem em falta - por estarem perdidas e não saberem muito bem para onde ir. Vão para a frente do crânio e chamam os ratos que vão porque sim, porque têm fome, porque como as palavras não têm morada certa nem reconhecem ambiente familiar.
Quando as palavras se alojam na parte da frente do crânio há uma dor fria que se espalha como fumo de condensação na sua facilidade- espalha-se como que na testa, isola-se em si mesma e atira-se, corpo sólido, à ossatura craniana, faz tamanho peso sobre ela que, inocente, ela quer pender para o chão.
Há uma dor, quando a cabeça quer rolar pelo chão. Mas é no querer que dói, é no querer e não deixar, não conseguir.
Há uma dor. É essa dor que nos diz: já chega por hoje.
Mas os ratos não tiram férias e as palavras existem até (quão mais audíveis?) no silêncio que é a cabeça a rolar pelo chão.

II. Não sei dizer ao certo quantas foram as palavras que desfiei até perder a vontade de ficar com elas. Foi sempre essa urgência- Oferecê-las. Depositá-las nas mãos de alguém como se das minhas vísceras se tratasse, as minhas vísceras que mostram. As minhas vísceras que são. As minhas veias corroídas, o meu sangue espesso; as minhas palavras como vísceras , mais vísceras porque urgentes de dizer que corroídas, que doídas que sufocadas.
Desfiar palavras é também, e muito mais, desfiar-me. Desfiar-me é desfazer-me, ter que me criar sem mãos dispostas e moldar estados de alma com encontrões e nódoas negras. Desfiar-me é perceber que as palavras não chegam e deixam de ter significado no seu cerne. - fica o significante a bailar, a ser repetido na voz louca de ser só significante.
(Não te explico nada. - As fugas são recíprocas e racionais. A cobardia é parte do ser humano no seu nível mais frágil. Ninguém quer ser chamado de frágil. - Não te explico nada.)
Há uma urgência no falar, uma urgência como vísceras a quererem ser entendidas: a desconstrução. A urgência de falar é perceber.
Não sei dizer ao certo quantas foram as palavras que desfiei até as palavras desfiadas serem só significante.

III. Não te posso fechar nas minhas mãos sem as querer cortar. - Fechar os olhos, engolir em seco, forçar os olhos a não ver. NÃO ESTOU A VER, NÃO ESTOU A VER. - e é claro.
Não te posso tocar ainda, nem esticar os meus dedos sequer - não me toques porque na casa que as minhas mãos formam à tua volta, o ar é meu, as paredes sou eu, o teto sou eu, os alicerces sou eu e os alicerces vão ruindo aos poucos. Em palavras e não palavras, pequenos ruídos inentados no intento das palavras e não palavras, pequenos Ah, que se perdem, coragem engolida, mastigada, mastigada novamente, escondida na parte da frente do crânio onde os ratos vão comer.
 A língua enrola-se para pedir. Para dizer: Deixa-me cuidar de ti, podes cuidar de mim? A língua só não se enrola para desdizer, para declarar "eu venço, eu venço. Não peço nada, não digo nada."
 E o único vencedor são os ratos. Os ratos e as minha mãos fechadas sem ti lá dentro, as minhas mãos a quererem cortar-se por já não saberem: Como é que se protege? Como é que se faz? Tudo se rasga, nada satisfaz.
E eu tentei vezes a mais remendar-me porque o vento era tortura contra outros corpos que não o meu, e eu tentei vezes demasiadas estender-me porque outros corpos eram maiores mas maior era a língua a querer desenrolar-se, e eu tentei mais vezes do que posso contar ter palavras para desfiar, como se fossem vísceras, para mostrar: estou aqui, podes matar. Estou aqui.

IV. Quando as palavras se alojam na parte da frente do crânio sei que tu estás do outro lado, em paralelo. E há uma dor e essa dor parece dizer: já chega por hoje.

1 comentário:

  1. "pequenos ruídos inentados no intento das palavras e não palavras" inventados?

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