terça-feira, 28 de outubro de 2014

Grande pássaro, pequena gaiola


Há uma idade certa para deixar de se ter idade. Existe um espaço de tempo em que a idade são só dias e anos a passarem. As mãos enrugadas e as asneiras da criança em sépia numa qualquer parte do córtex que mal as lembra – quem disse que eram asneiras? Quando se deixa de se ter idade começa-se a dizer que o que nos antecedeu foi uma asneira. Foram muitas asneiras. Foram outras vidas em que morremos para deixar de ter idade e ter mãos enrugadas e rostos engelhados pelo cansaço de rotinas que achámos que havíamos escolhido.
Não sei qual deles é que me enganou melhor quando me disse que chegara a hora de deixar gritos roucos para trás, umas botas gastas, um cabelo vermelho (quanta excentricidade! repetiam), uma música que me afastava das suas instituições. Não sei qual deles me pôs a idade num total vácuo que hoje quando penso nela as costas doem-me e sob elas debruço-me como se para amparar as primeiras cheias do Inverno, as primeiras árvores a cair à força de uma queda. Só.
A tristeza não vem dos lugares que não conhecemos mas daqueles que conhecemos bem demais para que os abandonemos totalmente. A tristeza vem das luzes apagadas antes de adormecer onde a criança deixou de viver nas ânsias futuras e deu lugar às certezas quase absolutas pelas quais todos se interessam mas que ninguém procura justificar a si mesmo. À sua criança porque a sua criança perdeu-se como se perdeu a idade nos números, mas nunca nas contas e nas taxas e na corrente de regras que nos foram ensinadas para o sucesso.
O sucesso diz-nos baixinho, como que aconselhando-nos, que ele só falará alto quando uma mesa redonda com mais comida do que gente estiver cheia de conversas que não passam de elogios. Mas eu lembro-me de quando eramos quatro. Vou sempre lembrar-me de quando eramos quatro e as lágrimas caíam porque não havia mais nada para cair naquele dia.
Mas eu lembro-me de quando era eu sozinha na banheira lá de casa a prometer que se respirasse fundo podia evitar morrer uma morte tão ignorada. Lembro-me quando a água acaba por esfriar e já era tempo de fazer qualquer coisa por mim quando qualquer coisa era tentar ser sem asas. – Há quem diga que voar é um mal. Como sonhar quando deixa de se ter idade. Principalmente como sonhar quando já não há idade.
A tristeza não vem do presente mas do presente que é já passado em que é impossível viver-se. A tristeza é não correr para o colo da mãe porque já não se tem idade. A tristeza é abafar um grito ou dois, uma lágrima ou uma torrente, uma vida ou as tantas que já se viveram porque um dia vamos precisar de uma mesa cheia de elogios mas vazia de asas. Uma mesa cheia de gaiolas que nos dizem que esta é a idade certa para deixar de se ter idade.

Vou lembrar-me de quando eramos quatro. Vou sempre lembrar-me de quando eramos quatro e eu ultrapassava o tecto de uma casa que era uma casa.

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